Quando se trata de turismo algumas reflexões que já se tornaram clichês são mais tangíveis. Afinal, o impacto no setor só não foi maior do que o sofrido pelos sistemas de saúde. Então seria o momento para repensarmos os impactos causados pelo overturismo?
As consequências são tão intensas que podemos dizer que viramos a chave em uma das principais discussões que conduzíamos: a do overturismo, turismo excessivo ou ainda turismo de massa. Antes da pandemia de Covid-19 interromper voos, fechar fronteiras e manter os cidadãos em casa, destinos como Amsterdam, Barcelona, Machu Picchu e Veneza – para ficar apenas em alguns exemplos – sofriam com a enxurrada sem fim de turistas, causando, entre diversas consequências, superlotação de atrações, encarecimento do custo de vida e aumento da poluição.
Se, antes, o número elevado de turistas levava a manifestações negativas da população, durante a pandemia da Covid-19 as atrações ficaram vazia. Depois, os destinos elaboram planos para voltar a receber viajantes pelos países.
O fato é que a pandemia desacelerou o mercado do turismo e trouxe a possibilidade de um turismo sustentável para o centro das discussões do setor.
Por mais que anúncios do tipo sejam parte das estratégias de marketing, como veremos adiante, todas as experiências que estão sendo estimuladas são contrapontos ao cenário do overturismo e podem funcionar como aliados na busca de um turismo responsável e sustentável para uma era pós-Covid-19.
Nesse sentido, atravessar fronteiras com responsabilidade e considerar a inovação e a sustentabilidade como o “novo normal”, por exemplo, são prioridades para a retomada do turismo na visão da Organização Mundial do Turismo das Nações Unidas (UNWTO, na sigla em inglês).
A instituição corrobora a visão acima, recomendando aos atores do turismo a promoção de novas experiências de viagem, focadas em indivíduos ou grupos pequenos, de turismo rural, natural, gastronômico, esportivo etc. e incentivando o mercado interno.
O turismo de massa como uma indústria lucrativa
Após meses e meses de trabalho, cansados de nossas rotinas, casas, empregos, queremos nos desligar, ainda que temporariamente, das nossas responsabilidades. Queremos desfrutar culinárias diferentes, ouvir, falar e praticar novos idiomas, conhecer novas culturas – enfim, respirar novos ares. Se você está aqui, lendo este texto, provavelmente você é um apaixonado por viagens e, há pelo menos um ano, sente falta disso.
Entretanto, todos esses prazeres, por vezes, nos fazem esquecer de um fato expressivo: o turismo é uma indústria. E como em todos os negócios, isso significa que os números e o dinheiro podem prevalecer sobre o bem-estar das pessoas e a conservação patrimonial e ambiental das cidades.
Para dar conta do tamanho desse mercado: a estimativa do Ministério do Turismo (MTur) é que, no Brasil, o setor emprega cerca de sete milhões de pessoas, direta ou indiretamente, e responde por cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB).
Globalmente, segundo dados do Conselho Mundial de Viagens e Turismo (WTTC, na sigla em inglês), o setor foi responsável por 5,5% do PIB mundial em 2020 e 10,4% em 2019. Mesmo com cerca de 62 milhões de empregos desaparecendo durante a pandemia, mais de 270 milhões de pessoas trabalham com turismo ao redor do mundo.
Afinal de contas, o que é overturismo?
É bom ter em mente o aspecto mercantilista das viagens para entendermos melhor o conceito de overturismo. Afinal, do que se trata esse turismo de massa ou turismo excessivo? Podemos dizer que um destino passa por isso quando a demanda por viagens é tão grande que a experiência nas cidades se torna desagradável para os moradores e para os visitantes.
Nesse espectro, alguns destinos podem sofrer mais ou menos consequências da presença exagerada de viajantes. Algumas implicações com as quais as cidades passam a conviver são: superlotação, poluição e produção de lixo, engarrafamento, filas, destruição ambiental, exploração profissional de mulheres, crianças e de animais, sem contar a marginalização de povos nativos, aumento excessivo do custo de vida, entre outras.
Em termos habitacionais, é comum que cidades que convivam com o overturismo vejam, ao menos nas áreas mais visitadas, os pequenos comerciantes fecharem suas portas, enquanto grandes redes globais assumem seus lugares.
É recorrente, ainda, o aumento nos aluguéis e no custo de vida, tornando inviável a permanência dos cidadãos nos bairros onde sempre viveram. Muitas vezes, em plataformas de aluguel por temporada como o AirBnB, um locador pode receber o mesmo valor de um aluguel mensal por apenas poucos dias de cobrança a um turista. Isso sem o controle tributário e legal ao qual estão submetidos os hotéis, por exemplo.
Novas regulamentações do Airbnb pelo mundo
O Airbnb chegou como uma solução incrível para hospedagens em qualquer canto do mundo, mas algumas cidades do Brasil e do mundo estão de olho nos efeitos negativos da plataforma desde antes da pandemia.
Muitas delas estão criando regras mais rígidas para tentar frear os problemas de urbanização.
As principais mudanças são:
- Exigir registro e taxas da hospedagem para os proprietários
- Autorização das aurotidades para usar o imóvel para este fim
- Limitar o tempo da estadia por reserva
- Proibir novas propriedades na plataforma
Se você quer fazer uma reserva no Airbnb para sua próxima viagem, aconselhamos que consulte as regras da plataforma no seu destino.
Não deixe de ler mais sobre as novas regulamentações do Airbnb no Brasil e em algumas cidades pelo mundo.
Os navios de cruzeiro também têm sido apontados como parte fundamental da equação do overturismo. Muitas vezes, embarcações enormes despejam milhares de turistas nas cidades, que passam algumas horas e vão embora sem ao menos gastar algum dinheiro na comunidade ou oferecer qualquer contrapartida.
Muito disso se deve ao estímulo que recebemos para frequentarmos sempre as mesmas cidades, listadas como locais “imperdíveis” por 9 entre 10 sites de viagens.
Todos esses elementos, como citamos, já vinham sendo debatidos antes da Covid-19 se alastrar. Pensar em destinos que tornassem mais saudável a nossa relação, ao viajar, com aqueles que nos recebem já era um desejo dos viajantes e um dos cenários esperados para o futuro. Agora, há uma oportunidade para acelerar essas discussões.
O marketing como um promotor do Overturismo
Um artigo recente publicado pela PhocusWire mostra como o marketing e as ferramentas de busca contribuem para o turismo excessivo. Isso porque a pesquisa em buscadores é um canal excelente para dar às pessoas o que elas já sabem que estão procurando, mas inútil para gerar demandas, ou seja, informar os indivíduos sobre coisas que ainda não sabem. Dessa forma, temos um ciclo de retroalimentação que aumenta custos de oferta, demanda e viagens a lugares populares.
Toda a cadeia de marketing de viagens convencional é desenvolvida para dar ao mercado o que ele deseja – um turismo massificado com uma quantidade absurda de pessoas em busca dos mesmos destinos – entrando, assim, em conflito com as comunidades regionais, o meio ambiente, os patrimônios das cidades e as novas formas de turismo.
E mesmo os turistas mais bem intencionados podem cair em armadilhas nesse sentido.
Há muitas pesquisas por destinos “alternativos” ou “fora da rota convencional”, e a propaganda do setor sempre reforça o aspecto “desconhecido” ou de “joia escondida” de determinada localidade. Na maioria dos casos, são apenas termos que não passam de clichês completamente assimilados pelo mercado que vende mitos através do marketing.
Ainda esse artigo a PhocusWire sugere que, em termos práticos, os atores do turismo poderiam trabalhar no sentido de interceptar a demanda existente e redirecioná-la a destinos menos buscados. Usando o Google, por exemplo, para encontrar quem pesquisa por viagens a Machu Picchu, Taj Mahal e Angor Wat e sugerir, como opção, idas a Kuelap, Jaisalmer e Koh.
Quais as consequências do Turismo de massa na prática?
Estima-se que, em tempos não pandêmicos, mais de 60 mil pessoas chegavam a Veneza todos os dias. Destes, nem metade passavam uma noite na cidade, sendo a grande maioria advinda dos enormes cruzeiros que atracavam no porto histórico veneziano.
Além dos problemas que o enorme fluxo de pessoas traz, a cidade tem que lidar com preocupações como a erosão do solo que pode colocar em risco toda sua estrutura. Como se não bastasse, a poluição e os danos aos canais, além das mudanças climáticas, têm resultado em tempestades e enchentes violentas, por exemplo.
Não à toa, desde meados da década passada, a UNESCO têm discutido a possibilidade de definir Veneza como em situação de risco. Em 2021, inclusive, o órgão levantou novamente a possibilidade, afirmando que só não o fará se a cidade apresentar progresso significativo e mensurável no seu estado de conservação.
Nesse cenário, há mais de uma década, os venezianos estão entre idas e vindas com o problema das grandes embarcações na Lagoa de Veneza. Em 2013, navios com mais de 40 mil toneladas foram proibidos de atracarem na região pela primeira vez – decisão contestada pela Justiça mais adiante. Em 2019, a polêmica se reacendeu com um acidente, quando um cruzeiro com mais de 2.500 passageiros se chocou com um barco atracado no canal, deixando cinco feridos.
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Em abril de 2021, finalmente, o governo italiano anunciou que os cruzeiros não poderão mais passar pela Praça de São Marcos. A decisão, segundo as autoridades locais, tem o intuito de proteger o patrimônio artístico, cultural e ambiental de Veneza. Agora, haverá um trabalho conjunto entre poder público e sociedade civil na tentativa de encontrar portos alternativos que possam receber os navios com mais de 40 mil toneladas.
Essa consulta popular, inclusive, é uma forma de devolver protagonismo aos moradores da região. Isso porque, a cada ano, a cidade perde cerca de mil habitantes, seja por conta da alta de preços, seja porque os proprietários preferem transformar seus apartamentos em hospedagens para turistas.
As autoridades também aprovaram, há dois anos, uma taxa para os turistas sem hospedagem na cidade visitarem o centro histórico de Veneza. A expectativa é que o mecanismo passe a funcionar em 2022 e que o valor fique entre €3 e €10, a depender da época. O dinheiro será revertido para a limpeza e manutenção da cidade e em auxílio aos moradores.
Amsterdam contra o Overturismo: o não-turismo
Que tal trocar aquela visita a um coffee shop por um dia de trabalho manual em uma fazenda urbana em Amsterdã, ao lado de um grupo de turistas e holandeses? Ou, em sua visita ao Distrito da Luz Vermelha, deixar de lado as baladas e atividades suspeitas, para recolher lixo reciclável e transformá-lo, com suas mãos, em um souvenir de viagem? Essas são apenas duas experiências oferecidas pelo Untourist Guide Amsterdam (Guia de não-turismo em Amsterdã, em tradução livre).
Cansados dos efeitos causados pelos mais de 20 milhões de turistas anuais que a capital holandesa recebe, uma comunidade de mais de 200 pessoas, entre empreendedores sociais e representantes de organizações não-governamentais, guias alternativos, hotéis e hostels, criou o The Untourist Movement Amsterdam, com o intuito de mudar o turismo na cidade para melhor.
Por meio do Guia de não-turismo e outras iniciativas, o grupo convida os viajantes a fugirem dos destinos padrões para contribuírem de maneira positiva com a cidade, seus indivíduos e, em maior escala, com o planeta.
Fugir do turismo de massa, para o The Untourist Movement Amsterdam, é uma maneira de ter uma experiência de viagem significativa e engajada, explorando Amsterdan de uma forma mais divertida, autêntica e responsável.
Além da iniciativa civil, o poder público também tem trabalhado para mitigar os efeitos do turismo de massa na cidade. Apartamentos ou casas só podem ser inteiramente alugadas, via plataformas como Airbnb, por no máximo 30 noites por ano. Além dessa medida, em 2018, a prefeitura de Amsterdam retirou o emblemático letreiro “Iamsterdam” da Praça dos Museus com o intuito de diminuir o intenso fluxo de turistas na região.
Já o Distrito da Luz Vermelha – onde estão vários coffee shops e a prostituição é legalizada – tem sido alvo da atenção das autoridades, que buscam tornar a relação dos turistas com o bairro menos nociva. Há uma discussão, nesse sentido, para proibir o uso de maconha nos cafés por turistas estrangeiros.
A administração, inclusive, tem sido mais rígida com delitos como beber ou urinar em público, comportamento comum em uma região onde o consumo de álcool e drogas é alto. A punição é cobrada no ato e não pagá-la pode acabar em polícia.
Ao longo dos últimos anos, várias campanhas publicitárias com motes contra o overturismo que evocavam equilíbrio, respeito e responsabilidade foram veiculadas na cidade. Uma delas servia como um aviso aos festeiros: “Eu vivo aqui”. Entre uma tentativa e outra, a própria Holanda já não investe na divulgação da cidade, estimulando que os turistas conheçam outras regiões do país, aliviando um pouco o overturismo em Amsterdã.
Existe uma nova forma de viajar?
Veneza e Amsterdam são apenas dois exemplos de uma lista extensa de cidades ao redor de todo o mundo que sofrem impactos severos do turismo excessivo. O crescimento de protestos, as iniciativas do poder público e os debates sobre o tema têm chegado a um público mais amplo que, por sua vez, tem inserido responsabilidade no topo da sua lista de viagem. E mesmo após a pandemia, esse sentimento continua forte.
Durante o período de pandemia, muitas nações tomaram medidas que garantiram a segurança sanitária dos turistas, que são base da economia em diversas regiões. As ações envolveram bolhas de viagem, isolamento no desembarque, ou “passaportes” de vacinação e/ou testagem negativa para Covid-19. Por outro lado, outros atores enxergam que este foi o momento de propor novas reflexões.
Para Jonathon Day, professor da Escola de Hospitalidade e Gestão de Turismo de Purdue (Indiana, EUA), a pandemia pode ter servido como uma válvula de escape para levar esse debate adiante. “Estávamos acima da capacidade em alguns destinos. Agora, temos um momento para pensar: o sistema [do turismo] está funcionando?”, declarou ao Travel Weekly.
“Lentamente, nosso mundo se reconectará – fronteira por fronteira – e abrirá. No entanto, retornar ao ponto em que estávamos não deve ser a nossa métrica, pois o turismo de massa tem um lado muito sórdido. Devemos parar de pensar em ‘recuperar’ a indústria do turismo e trabalhar para fazer uma transição das viagens e do turismo para um nível verdadeiramente sustentável”, defendeu o jornalista de viagens Andrew Evans, em artigo.
A visão dos especialistas é a de que, se houver uma reflexão séria e bem-sucedida sobre o tema, a experiência do turismo poderá se transformar – e para melhor. A tendência é que os consumidores busquem viagens com mais qualidade, sensíveis à cultura e à sustentabilidade, e que fortaleça os negócios regionais – movimentos que, independentemente do setor, já observamos crescerem desde que a pandemia de Covid-19 nos arrebatou.
À Rooted, Bruno Gomes, criador da We Hate Tourism Tours, companhia que estimula formas alternativas de turismo, define o “turismo tradicional” como um modelo circular que se autoalimenta e estimula expectativas irrealistas do viajante, narrativas unilaterais, superlotação de pontos turísticos populares e exploração da população e da cultura.
“As ‘atrações imperdíveis’ são apresentadas com um roteiro que é amplamente escrito pela cultura dominante. Em relação às experiências ‘locais’, ocasionalmente elas podem se transformar em apropriação cultural, pois os turistas querem ver as pessoas em roupas tradicionais realizando seus rituais em vez de manter conversas com os habitantes da cidade em atividades cotidianas”, refletiu.
Pensando nisso, sua empresa baseada em Portugal tenta oferecer alternativas. A ideia é simples: que os moradores recebam os turistas e apresentem a eles a cidade real em que vivem, explorando e descobrindo em conjunto o que é realmente importante na sua cultura. Como eles anunciam, a experiência que oferecem é o real deal – o lado bom e o lado ruim da cidade.
Em Lisboa, por exemplo, a empresa oferece um passeio pela “cidade real”, fora da rota do turismo, ou mesmo um tour pelos marcos locais, mas com uma abordagem histórica sobre eles, evidenciando o motivo dos monumentos existirem. Já no Porto, um dos passeios pela cidade oferece uma reflexão sobre o boom do turismo e os impactos econômicos que a pandemia de Covid-19 teve na região.
Por priorizar passeios ao ar livre e com número restrito de pessoas – a We Hate Tourism Tour, por exemplo, oferece atividades a grupos com no máximo seis pessoas –, esse tipo de turismo pode representar uma maneira segura de conhecer novos destinos em tempos pandêmicos e pós pandêmicos.
Segundo JoAnna Haugen, fundadora da Rooted, as discussões sobre o não-turismo (bem como acerca do overturismo) estão apenas começando a chegar ao público mainstream. Sua avaliação é que essa forma de enxergar o turismo, mais lento e em menor escala, oferece benefícios econômicos robustos e de longo prazo, privilegiando a atenção nas pessoas, nas experiências e nas histórias em vez de bucket lists e selfies. “Com o foco em uma nova realidade de turismo, o untourism (não-turismo) pode ser o modelo que a indústria necessita.”
Excelente texto!
Pena que, passada a pandemia, tudo continua como dantes no quartel de Abrantes…
Pois é!
Estamos vendo algumas iniciativas crescendo, mas ainda temos um longo caminho pela frente.