O impacto humano no planeta é severo e o turismo tem responsabilidade nesse problema, mas em escala individual e coletiva ainda podemos mudar esse curso.
Em 9 de agosto último, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) trouxe à tona uma realidade que muitas vezes dissimulamos: os efeitos da atividade humana no planeta são alarmantes e, sob certos aspectos, irreversíveis. O mais recente relatório do órgão também foi enfático em relação à urgência da situação. Não se trata mais de planejar metas para o futuro, mas de agir.
Isso porque não falamos mais de efeitos que poderão ser sentidos nas próximas décadas ou anos. Tratamos, na realidade, de eventos adversos que estão ocorrendo hoje, neste momento, impactando a condição de vida contemporânea e colocando o futuro da humanidade e do planeta em jogo.
A alta da temperatura média é o exemplo mais emblemático desse panorama. O Acordo de Paris – plano transnacional firmado em 2015 para mitigar o aquecimento global – estabeleceu 1,5ºC como limiar aceitável de crescimento. Hoje, embora a média do aumento esteja em 1,09ºC, já há cidades em que a população convive com temperaturas 1,59ºC mais altas do que no período pré-industrial. No ritmo atual, passaremos o índice determinado nas próximas duas décadas.
O sentimento é de alarme e não contém nenhum exagero. Estima-se que, não fosse a ação humana, no máximo 5% dos eventos extremos da última década teriam acontecido, o que mostra que as variações extremas de temperatura e as suas consequências não são de responsabilidade da variabilidade natural do clima. Cabe a nós, humanos, portanto, tomarmos responsabilidade por isso e tentarmos conter os danos que ainda podemos manejar.
E o turismo com isso?
A relação é total. Estima-se que 8% das emissões globais de gases do efeito estufa partam do setor de viagem e transportes, sendo metade disso responsabilidade do turismo – ou seja, de viagens não-essenciais. Os voos de avião (movidos a combustíveis fósseis, lembremos) dobraram de frequência nos últimos 15 anos e deverão duplicar mais uma vez até 2030, segundo a Associação Internacional de Transporte Aéreo (IATA).
A queda brusca no número de viagens por conta da pandemia de Covid-19 fez com que as emissões de carbono do setor da aviação diminuíssem aproximadamente 50% em 2020, segundo dados do Carbon Monitor. Já a emissão de gases de efeito estufa caiu 7%. Os números são sinais claros de que voar tem impactos negativos per se – mote do movimento “flight shaming” (leia abaixo).
Dessa forma, as demandas socioambientais no turismo passaram a ganhar relevância e, nos últimos anos, têm caminhado lado a lado com as discussões sobre overturismo. Esse conceito é aplicado quando um destino tem uma demanda por viagens tão grande que a experiência nas cidades se torna desagradável para turistas e, sobretudo, para moradores.
A presença exagerada de viajantes em uma determinada região redundará, quase sempre, em poluição, produção de lixo, engarrafamentos, destruição ambiental e exploração animal – para ficar somente nos efeitos de cunho ambiental.
Um exemplo emblemático da infame soma de aquecimento global e overturismo é Veneza, que está na lista de destinos em risco da Unesco. Não somente sua fundação está ameaçada – por conta da erosão causada por enormes cruzeiros, hoje banidos – como a cidade tem sofrido danos e impactos severos causados pelas tempestades e enchentes violentas, reflexos das mudanças climáticas e da poluição.
Barcelona é outro caso relevante dentro desse contexto. Há 15 anos, a cidade fazia marketing agressivo para receber turistas e atrair grandes cruzeiros. Hoje, com a cidade superlotada, a campanha é contrária: os catalães não querem mais receber estrangeiros. Isso é resultado da falta de planejamento de crescimento sustentável ao pensar o turismo, segundo Yves Marceau, presidente da agência G Adventures, que tenta promover tours mais responsáveis pelo mundo.
Outra especialista no assunto, Paloma Zapata, CEO da Sustainable Travel International, que atua em parceria com destinos para promover práticas mais responsáveis de viagem, lamenta que ainda exista pouca literatura crítica sobre a construção e a efetividade de modelos de governança para promover turismo sustentável nas cidades e países ao redor do mundo.
“Lentamente, diferentes destinos estão entendendo que você tem de ter líderes que queiram fazer a diferença”, declarou Zapata ao Skift. Por outro lado, “há destinos em que isso é absolutamente impossível. É muito desconexo e não há liderança evidente. Há somente políticos atuando em benefício próprio. Um exemplo é a República Dominicana, absolutamente explorada. As praias onde cresci se foram. Devastadoramente, acabaram. E o que eles fazem? Simplesmente, vão explorar outra praia”, completou.
Toda essa discussão tem avançado de maneira abrupta por conta da pandemia do coronavírus, um momento que tem sido apontado por especialistas do mercado como um ponto de inflexão para repensar práticas que estavam no piloto automático no turismo. A tendência – corroborada por pesquisas recentes da Booking.com – é que as pessoas busquem, no pós-pandemia, viajar pensando mais em sustentabilidade para destinos menos frequentados, em pequenos grupos e apoiando a comunidade local.
Impactos ambientais e urbanos
De maneira resumida, podemos dizer que a emissão de gases de efeito estufa provoca o aquecimento global, que, por sua vez, aumenta sobremaneira o risco de eventos climáticos de proporções catastróficas, como incêndios, secas e furacões, desequilibrando ecossistemas e impactando no ciclo natural de diversas espécies.
As temperaturas mais elevadas interferem agressivamente na vida animal. Dados compilados pelo Fórum Econômico Mundial indicam que um milhão de espécies enfrentam risco de extinção e que, desde 1970, a população de vertebrados (como pássaros, mamíferos, anfíbios e répteis) diminuiu em 60%.
Deveríamos nos ater mais a essa extinção em massa, uma vez que o colapso da biodiversidade é também o colapso humano. Quem você acha que polinizará as nossas vegetações quando as abelhas e outros insetos ameaçados não estiverem mais aqui?
Se os impactos na fauna e na flora podem ser perdidos de vista com facilidade, por ocorrerem, na maioria dos casos, longe de nós, os impactos urbanos são mais evidentes. Em Santos, por exemplo, o aquecimento global tem tornado as ressacas mais fortes e frequentes.
É um ciclo: o calor da água resulta em ventos mais agressivos, que, aliado ao aumento do nível do mar por conta do derretimento de geleiras, resulta em ondas maiores. Aos poucos, a água vai avançando sobre a infraestrutura da cidade e redesenhando as praias. Esse especial da Folha de S. Paulo dá a medida exata do quanto a cidade regrediu, com faixas de areia cada vez menores por conta dos processos de erosão.
Nem só no litoral os efeitos do aquecimento global se fazem sentir. Em Chicago, principal cidade do Centro-Oeste dos Estados Unidos, os problemas ambientais têm se manifestado de maneira dramática com a variação do Lago Michigan. Nos últimos sete anos, o nível do lago flutuou em mais de 1,80m – subindo e descendo.
A imprevisibilidade é um complicador. Quando falamos em oceanos, é esperado que subam e a um ritmo mensurável. Em relação ao lago, as alterações de temperatura têm modificado dois elementos centrais que a cada ano disputam um cabo de guerra entre si: a precipitação e a evaporação de água. Dessa maneira, o Lago Michigan tem se tornado cada vez mais instável – o que, segundo os especialistas, tende a continuar.
Quando o nível sobe, as águas provocam enchentes violentas na cidade. Quando descem, apontam para um risco ainda mais grave: o de reverter o fluxo do rio Chicago. Normalmente, ele corre para fora do lago, carregando as águas residuais tratadas pela cidade. Com a queda do nível do Lago Michigan, há uma chance de que ele passe a correr em sua direção, levando a água contaminada para a fonte de água potável de Chicago.
Como podemos interromper esse ciclo?
A expectativa é que o relatório do IPCC estimule os governos a planejarem ações significativas durante a próxima Conferência do Clima da Organização das Nações Unidas – a COP-26 – em novembro deste ano. Até porque o relatório trouxe algumas descobertas importantes, como a influência alta da emissão de metano no aquecimento global, o que pode ser contido com as medidas certas.
No turismo, um dos primeiros passos para a mudança é entendermos que a sustentabilidade precisa ser real e constante, mais do que um discurso ou anúncio verde e fofo. Não podemos manter a consciência limpa porque hotéis, restaurantes e aeroportos deixaram de disponibilizar canudos e embalagens de plástico ou porque não jogamos lixo no chão. É preciso repensar toda a cadeia e refletir sobre os impactos que cada ator e cada decisão sobre a sua viagem pode ter.
Ou seja, diante de estratégias de greenwashing é necessário que nós, enquanto turistas, saibamos identificar esses mecanismos de propaganda e que as autoridades tenham formas de combater e fiscalizar governos, indústrias e empresas. Essa “maquiagem verde” – quando discursos publicitários ecologicamente responsáveis não correspondem à realidade – tem sido recorrente, dada a demanda crescente por responsabilidade ambiental.
Como explica Vicky Smith, em artigo no site Earth Changers, sustentabilidade no turismo não é uma única coisa. É, na verdade, uma receita complexa que envolve serviços intangíveis, comumente orquestrados por trás das cortinas das operações.
“Os governos, em sua maioria, não intervieram com regulamentações. Ao contrário, uniram-se ao poder econômico e permitiram que o mercado ditasse as regras e que o setor privado se autorregulasse. Como resultado, a sustentabilidade no turismo tem sido promovida por indivíduos apaixonados, que de maneira voluntária e firme estão comprometidos com ações simples como ‘fazer a coisa certa’”, analisa Smith em seu artigo.
Infelizmente, sem uma massificação na exigência por práticas mais sustentáveis partindo de consumidores e com a ausência de novas normatizações governamentais, não há financiamento para ações importantes nesse sentido. Dessa maneira, para Smith, os recursos e a escala de reprodutibilidade das boas ideias seguirão como desafios, sem que o potencial de mudanças atinja o impacto desejado.
É muito importante termos consciência que toda essa equação complexa exige esforços coordenados de autoridades e líderes mundiais, em um trabalho conjunto com as grandes companhias do setor. Por outro lado, também é de extrema relevância saber que nós, individualmente, podemos promover atitudes de mudança e, ao menos, minimizar o quanto possível o impacto que causamos ao viajarmos.
O que você pode fazer já
Conhecer os dados básicos sobra a crise climática, lidar de maneira séria com a realidade e ter consciência acerca do problema é o primeiro passo. Não seja um negacionista climático. Tendo tudo isso em conta na hora de planejar a sua viagem, você provavelmente tomará decisões mais responsáveis. Exigir padrões mínimos de responsabilidade dos serviços a serem contratados é uma forma de aumentar a escala dessa demanda, de maneira geral.
Optar por um turismo mais preocupado com qualidade e menos com quantidade também é outro caminho de mudanças e, inclusive, uma tendência. Não somente pelas necessidades ambientais, mas inclusive como maneira de mitigar os efeitos do overturismo e como alternativa para retomar as viagens em um mundo futuro pós-pandemia de Covid-19.
Pensando assim, podemos focar menos em lista de monumentos e de cidades e mais em experiências reais, sejam elas urbanas ou rurais. São pontos a se considerar durante suas férias: meu destino respeita normas básicas de sustentabilidade e direitos humanos? Preciso mesmo alugar um carro ou posso optar por transporte público ou bicicletas? De que forma posso me envolver e apoiar a comunidade local?
Há outras questões mais óbvias e batidas, mas extremamente relevantes. Não atrapalhe, recolha seu lixo, não interaja com animais sem permissão, consuma recursos de maneira inteligente. Priorize os negócios locais: evite grandes redes, conheça os comerciantes que fazem daquele destino uma cidade de verdade. Além disso, respeite – e não explore – a cultura local. Viva as tradições com os moradores em vez de optar por atrações clichês sobre a região em que está.
À Traveler, Gregory Miller, diretor-executivo da ONG Center for Responsible Travel, sintetizou: “Você não pode olhar para sustentabilidade sem olhar ao continuum dos elementos naturais, culturais e espirituais de um local. Seja em Tóquio, Galápagos, Yosemite ou Veneza: humanos são os stakeholders determinantes na proteção dos lugares. Se eles não forem sustentáveis, o local não será sustentável”.
Iniciativas de destaque: ideias sustentáveis
Como forma de estimular o desenvolvimento de práticas sustentáveis, a Organização Mundial do Turismo (UNWTO, na sigla em inglês) tem promovido competições entre startups que trabalham para encontrar soluções na cadeia turística. Na última competição global, uma das iniciativas premiadas foi a colombiana Impulse Travel, uma empresa que oferece tours nos quais os viajantes podem se engajar em experiências que tragam impactos sociais positivos.
A startup identifica tradições culturais, iniciativas artísticas e outras produções que tenham raiz nas comunidades afetadas pela violência e as insere no centro dos passeios que oferece. Como eles definem, essa é uma forma de fazer com o que o turista ajude a girar as rodas dos processos de construção de paz e de cura coletiva na Colômbia, inclusive por meio dos lucros revertidos aos projetos contemplados.
Outra startup premiada, a Tobadaa, tem empoderado financeiramente egípcios, permitindo que cidadãos se transformem em guias turísticos. A iniciativa une os turistas aos moradores interessados, que apresentam o Egito aos forasteiros, substituindo os passeios sugeridos pelas agências de viagem convencionais.
No Brasil, o turismo regenerativo encontra lugar, por exemplo, no turismo de base comunitária praticado na Pousada Uakari, dentro da Reserva Mamirauá, no Amazonas. A hospedagem foi criada em 1998 e, desde então, acumula prêmios nacionais e internacionais tanto por sua atuação responsável, quanto pela exuberância do destino, no coração da Amazônia, entre os rios Solimões, Japurá e Auati-Paraná.
O empreendimento tem gestão compartilhada entre o Instituto Mamirauá e as comunidades da reserva. Por meio de uma associação de guias de ecoturismo, os nativos da região têm protagonismo central nas decisões da pousada e conduzem as atividades turísticas e educativas de acordo com as suas determinações.
Os moradores das comunidades ribeirinhas, inclusive, são a grande maioria entre os funcionários da pousada, trabalhando em sistema de revezamento para que possam seguir suas atividades rotineiras sem estabelecer uma relação de dependência com o turismo no local. A estrutura também é pensada para ter o menor impacto possível: a energia é solar, a água da chuva é coletada e armazenada e os efluentes são tratados antes de voltarem aos rios.
Conceitos de turismo e sustentabilidade
Turismo regenerativo
Além de não causar danos, tem quem queira ir além promovendo impacto positivo durante sua viagem – por vias físicas, psicológicas, sociais, culturais e econômicas. Cada vez mais comunidades e hotéis, por exemplo, estão desenvolvimento ações de recuperação ambiental em que os turistas podem se envolver. Fique atento, porém: há muitas entidades que seguem com práticas agressivas disfarçadas sob o verniz do voluntariado.
Flight shame
Trata-se de um movimento recente, nascido na Suécia, que encoraja as pessoas a deixarem as viagens de avião de lado como forma de diminuir as emissões de carbono (cerca de 2,5% dessa carga global é de responsabilidade da aviação comercial). Mesmo entre aqueles que preferem meios sustentáveis de viajar, essa iniciativa não é consenso, já que optar por uma viagem de trem ou ônibus envolve variáveis éticas, financeiras e logísticas que podem ser excludentes.
E você? Já parou para pensar como pode fazer parte dessa mudança? A hora é agora (ou esse bonde já passou).